(…)Rust então sentou-se perto da fogueira, pegou um pequeno pedaço de madeira que estava ao chão, retirou uma adaga da bainha em sua cintura, e começou a entalhar. Se acomodou em sua cadeira, e inspirou pesado:
– Guria, você conhece a história do Guthrie o Meio-Golem?
Valen acenou a cabeça negativamente.
– Pois então preste atenção:
“Há muito tempo atrás, antes da Madrugada da Tormenta existia um vagabundo, que morava na cidade de Erbítia. Ele fora um grande ferreiro, que botou tudo a perder por causa de jogos, bebidas e putas. Sem um tostão no bolso, passava seus dias atirado em sarjetas da grande cidade, e suas noites tentando conseguir algumas moedas de cobre apenas para saciar sua abstinência por álcool. Guthrie já não era mais aquele ser que todos admiravam, na realidade um cachorro sarnento era mais útil que ele. Do que adiantava um ferreiro que não forjara mais? Um dia, após tentar agarrar a força uma senhora que havia confundido com uma cortesã, Guthrie foi expulso da cidade, sendo obrigado a viver em um bosque perto dali. Ele não tinha mais expectativas, estava esperando pela morte.
Conseguiu encontrar uma caverna onde podia se abrigar do vento e dos perigos que a noite trás consigo. Com fome e sede, começou a trovejar para o Deus da Forja:
– Thrürin! Por que me abandonastes? Eu, o seu servo mais leal?! Você não passa de um verme filho da puta! Maldito seja! Eu espero que seu metal enferruje e que sua forja apague!
E então, no silêncio da madrugada, se escuta um barulho alto. Um barulho que Guthrie estava acostumado a ouvir no seus dias de ferreiro. Era o barulho do martelo quando acerta o metal para moldá-lo, só que mil vezes mais alto, um barulho tão ensurdecedor que poderia ser ouvido do reino vizinho. E então, um raio alaranjado rasga a escuridão da madrugada, e trazendo consigo Thrürin, acompanhado do seu martelo Ydrovir. O Deus da Forja tinha a aparência de um homem comum, seu corpo era cinza como a foligem, sua barba alaranjada como o fogo da forja mais escaldante, em sua cabeça runas antigas ao invés de cabelo. Era alto, mais alto que um ser humano poderia ser, vestia apenas uma camisa coberta por um peitoral de uma armadura tão brilhante que mal podia se olhar. Em seu ombro direito se encontra uma ombreira em formato de cabeça de lobo, e em sua mão esquerda Ydrovir, o martelo que podia forjar qualquer coisa.
– Por que gritas comigo, Filho da Forja, se quem enferrujou e apodreceu seu caminho foi você mesmo?
– Você….Você é Thürin?! Meu Senhor por que viestes a estas terras?
– Você queria me ver não? Pois aqui estou. O que deseja falar comigo?
– Senhor, eu perdi o caminho da forja! Eu preciso me redimir com minha família! Eu preciso recuperar a minha honra como ferreiro! Me ajude!
– Bem, eu poderia torná-lo o melhor ferreiro que o reino dos homens jamais presenciou, ou irá presenciar, se é isto que deseja.
– Por favor, eu imploro meu bom Thürin! É o que eu mais quero nesta vida!
– Se é isto que você deseja… Porém é necesário sacrifícios.
– Diga! Por favor! É só pedir que irei lhe atende-lo.
– Eu quero o seu braço, e a sua perna.
Guthrie ficou sem expressão, como um Deus poderia exigir tal ato, perguntou-se.
– Mas — Como eu irei ser um ferreiro sem um braço?
– Um mestre da forja é mais que um braço e uma perna, ele é a fusão do metal, do fogo, do carvão, e de seu martelo. Você confia em mim, Guthrie?
– Bom… Sim, eu confio no Senhor. Se é o que deseja, então são seus!
Thrürin posicionou o seu martelo um pouco abaixo do ombro direito de Guthrie e com um impulso de leve pra trás, o golpeou. Guthrie sentiu o poderoso martelo amassando sua pele, rasgando os seus músculos e quebrando os seus ossos. A dor daquele golpe foi substituída pela segunda pancada que Thürin veio a desferir em sua perna esquerda, bem acima do joelho. O velho ferreiro não resistiu a dor, e após alguns segundos de gritos, adormeceu.
Após algumas horas, Guthrie recobrou a consciência, sentia ainda a dor das pancadas divinas. E então viu que, por causa dos golpes, seu braço e perna sofreram uma espécie de mutação – Aonde havia pele, músculos, ossos, e sangue, foi substituído por pedras, galhos, musgo, metal e carvão. Sua mão virou uma espécie de coridon esverdeado, seus dedos, uma espécie de ferro maleável. Ainda em choque, o ferreiro perdido escutara a voz imponente mais uma vez:
–Parece que subestimei você.
-O que aconteceu comigo?! Por que eu virei um monstro?!
–Você resistiu a minha benção divina, virou uma obra perfeita, o melhor ferreiro que o reino dos homens irá ver. A mistura entre forja e homem, você é Guthrie a Forja.
Thrürin pegou um pedaço de tora que estava em seu lado e entregou para Guthrie.
–Faça essa tora virar um machado.
-O que você está dizendo? Como irei transformar essa tora em uma arma?
–Visualize o machado, sinta as fibras da madeira, pense na forma, na curvatura, no peso, no fio e no balanço do machado. Quando tudo estiver em perfeita sincronia em sua mente e alma, bata com sua mão na madeira.
Guthrie se concentrou, e seguiu os passos ensinados pelo Deus. Quando golpeou aquele pedaço de tora, um som celestial foi reproduzido, e em sua frente um machado havia sido criado.
-Oh céus! Eu não acredito! Funcionou! Eu realmente consegui!
–Você tem uma benção em suas mãos Guthrie, saiba usar sabiamente.
-Obrigado Thürin, obrigado!
O Deus da Forja pegou o seu martelo, porém antes de partir para o panteão, profetizou para Guthrie:
–Você é um ferreiro, e sua vida agora é apenas forjar. Nada mais importa; Amor, família, dinheiro, fama. Nada disso irá completar sua vida, e se você se distanciar da forja por qualquer motivo fútil, seu corpo será tomado pela corrupção, e você jamais irá forjar algo na sua vida.
E com o mesmo som do martelo batendo no metal, Thürin ascendeu aos céus. Guthrie estava confuso, porém feliz, tudo que ele queria era um objetivo na sua vida e agora havia conquistado um. E por dez anos ele forjou armas e armaduras sem parar, forjara com todo os tipos de materiais: Rochas, vidros de garrafas quebradas, até mesmo folhas, que se tornavam elmos e escudos super resistentes. Tudo corria muito bem, até a chegada do exército do reino inimigo, que estabeleceu acampamento em seu bosque. Depois de tanto tempo convivendo apenas com animais, o velho ferreiro havia se esquecido o quão preconceituoso e vil é o homem.
Não demorou muito para que o exército do Rei Aldbert encontra-se o homem deformado. Por causa de sua perna pesada, Guthrie não tinha como se locomover em grandes distâncias. Quando os soldados avistaram sua imagem, paralisaram na hora. Todos pensaram a mesma coisa: A lenda do Golem, que havia se espalhado por aquelas terras era verdade. Sacaram rápido suas espadas, arcos e escudos e partiram pra cima de Guthrie que, pego de surpresa, só conseguiu levantar os braços para se proteger. Um dos soldados, completamente assustado, partiu para o ataque, acertando com sua espada o braço-pedra de Guthrie. Foi então que uma força divina lançou para longe o soldado, bem acima de seus outros dois companheiros que estavam mais atrás. Guthrie não estava entendendo porque tudo aquilo estava acontecendo com ele, que mal ele havia causado para aqueles guerreiros terem tanto ódio dele? Mas antes de conseguir encontrar qualquer explicação, encontrou-se cercado por 20 soldados pronto para matá-lo. Até que uma voz vindo ao fundo surgiu:
-Soldados, abaixem suas armas!
Surgindo das sombras do bosque, em cima de um cavalo negro, um cavaleiro vestido uma armadura vermelha, com detalhes em prata e um brasão de um falcão marcado em seu peitoral. Um homem com aparência jovial, de cabelos loiros e ondulados. Seu nome, Beorth, General do exército do Falcão Celeste e filho de Aldbert. O cavaleiro foi em direção a Guthrie, os soldados abriram passagem para que seu superior ficasse bem próximo ao ferreiro:
-Qual é o seu nome?
-Gut…Guthrie.
-Meu nome é Beorth, sou o general do exército do Falcão Divino. Me diga Guthrie, o que é você?
Guthrie notou que aquele homem era um nobre, e por um motivo que não sabia dizer ao certo, sentia-se seguro com sua presença. Respirou fundo e contou a sua história:
-Há dez anos atrás eu fui abençoado pro Thürin, o Deus da Forja, com o dom de forjar qualquer coisa de qualquer material, porém para realizar isso foi necessário que eu me tornasse junto à forja, por isso tenho esta aparência monstruosa.
-Isso é verdade? Teria como você me provar?
-Sim, poderia me alcançar o lenço em torno de seu pescoço?
Beorth tirou o lenço e entregou para Guthrie. Ele posicionou o lenço dobrado no chão, e com apenas um toque com sua mão-forja, o transformou em uma pequena adaga. Entregou para Beorth, o cavaleiro impressionado com tal habilidade exclamou:
-Impressionante! Jamais presenciei algo assim! Preciso testar o poder desta adaga.
O cavaleiro primeiro testou em uma árvore próxima a ele, balançou o seu braço para direita desferindo um corte que fez a estrutura do tronco da árvore ceder ao chão. Após isto testou em uma rocha, partira a mesma em dois. Por último um cavalo, queria sentir como era a sensação de cortar carne com tal artefato. Posicionou a adaga na altura do pescoço do cavalo, e com um movimento preciso e leve, fez com que a cabeça do cavalo rolasse ao chão, explodindo sangue para todos os lados. Neste momento Guthrie notou que havia cometido um erro ao confiar em tal homem.
-Esse! Esse é o poder que precisávamos para vencer está guerra! O que acha meu nobre ferreiro? Gostaria de fazer parte das forças de sua majestade, o Rei Aldbert? Ouro e fama esperam por você na capital!
-Obri– obrigado milorde. Porém terei que recusar a sua oferta. Disse Guthrie humilmente para o jovem cavaleiro. Beorth fechou o sorriso do seu rosto e trocou por uma face séria e ameaçadora.
-Posso perguntar o motivo?
-Em ordem de manter meu dom, eu jamais posso atribuir os valores da minha arte para a fama ou riqueza. Se fizesse o perderia.
Beorth fechou os olhos em um sinal de aceitação, e em uma fração de segundo depois, a adaga em sua mão se direcionava a garganta de Guthrie.
-Nesse caso, então terei que levá-lo a força. Não me entenda errado, mas temos uma guerra à frente, e deixá-lo aqui criando musgo seria um desperdício de talento, não é mesmo?
Antes que pudesse fazer algo, Guthrie viu sua consciência apagar com um golpe certeiro em sua nuca. Quando acordou, viu-se preso em uma espécie de calabouço abaixo da terra, a única entrada ali era uma escotilha, 15 metros acima de sua cabeça. Sabia que com seus membros rochosos jamais conseguiria sair de lá. Passando algumas horas, as escotilhas se abriram, e adentrando ao calabouço vinha Beorth acompanhado de seu pai, Aldbert.
-Veja pai! Veja que magnífica criatura!
-Pelo amor dos Deuses Beo, ele me dá náuseas.
-Veja isso então! Vamos ferreiro, crie algo para mim!
Beorth jogou um pedaço de madeira para Guthrie que, assustado, sabia que não poderia se negar em forjar. Posicionou seu braço acima transformando aquela tábua em um escudo.
-Pelo Céus isso é incrível! Era o que precisávamos! Gritou o Rei.
-Milorde, como havia lhe dito, eu não posso forjar armas para você. Disse Guthrie intimidado com a presença dos nobres.
-Você não entendeu criatura nojenta, você é meu prisioneiro, e fará como eu ordenar! Gritou Beorth.
-Eu me nego a forjar qualquer coisa para você, que eu perca o meu dom, mas jamais irei ajudar a tiranos como vocês! – Guthrie perdeu sua paciência.
-Oh, pensei que iria dizer isso.
Olhando para cima, o cavaleiro dá ordem para os soldados de descerem até o calabouço. Acompanhando os três soldados havia uma mulher, com seus pulsos presos por algemas. Guthrie conhecia aquela mulher, era sua esposa Cyra que há muito não a vira.
-Oh Cyra! Pelos céus, achei que jamais a viria.
-Guthrie, o que aconteceu com você? Pelos Deuses!
-Okay, chega de reencontro familiar. Interrompeu Beorth.
-Sabe, quando pegamos você, eu pedi para um informante coletar informações de quem você era. E parece que antes de ser meio-golem, o nome ‘Guthrie’ já era ligado a um ferreiro famoso, que abandonou sua família por causa da bebida. Depois disso foi fácil criar uma vantagem para cima de você, a preciosa Cyra aqui, com seu pequenino filh—
-O que você quer maldito? Guthrie interrompeu Beorth.
-É simples. Faça armas para o meu exército, que pouparei a sua esposa e seu filho.
-Se você tocar nela eu mato você!
-Oh por favor, você mal consegue mexer está sua perna quem dirá me matar. Beorth agarrou Cyra pela cintura.
-E se você continuar com essa atitude, esse castigo vai ser pior com a linda Cyra.
O cavaleiro jogou a mulher ao chão e ordenou aos guardas que rasgassem suas roupas e a violassem. Guthrie tomado de raiva tentou se arrastar para salvar sua esposa, porém não havia notado que seu peito estava preso à uma corrente junto da parede da caverna. Os três soldados estupraram Cyra na frente de Guthrie.
-Se você não fizer o meu armamento, eu mandarei os soldados repetirem isto todos os dias na sua frente, depois mandarei os cachorros, e depois os cavalos. Se isso não for o suficiente eu matarei ela lentamente. Então se você quer evitar mais desespero para sua querida Cyra, sugiro que comece logo. Os nobres e os soldados arrastando Cyra, retornaram para a escotilha, ao saírem uma enorme quantidade de materiais caiu sobre o chão do calabouço.
-Lhe darei dois anos Homem-Golem! Faça o que nasceu pra fazer e transforme o meu exército em uma dádiva dos deuses! Gritou Beorth com um ar de deboche e desprezo.
Guthrie sentiu um vazio forte em seu coração, não encontrara mais sentido para viver, a não ser o sentimento de vingança que surgia em sua alma.
E durante dois anos ele fez o equipamento para o exército do Falcão Celeste, construía todo o tipo de equipamento com a sucata que lhe era jogada escotilha a baixo. Criou Elmos, botas, armaduras, espadas, arcos e flechas, lanças, martelos de guerra. No final do tempo limite, Beorth retornou ao calabouço:
-Impressionante Guthrie! Você realmente conseguiu! Tenho o melhor armamento dos cinco reinos e com certeza irei ganhar esta guerra!
-Milorde…Gostaria de ver Cyra agora – Suplicou em voz baixa.
-Claro, você verá ela logo. Preciso que construa algo para mim antes. Eu quero que faça a mais forte espada, com este pergaminho de papel.
Guthrie nunca havia moldado um papel antes, sabia que por sua natureza o papel possuía fio para corte, mas que também era maleável e leve. Pensando nessas propriedades o ferreiro desferiu o golpe naquele pergaminho. A sala se encheu com uma luz verde, um barulho estrondoso surgiu quando a mão de Guthrie acertou o papel. E então uma espada, de lâmina branca, com seu copo em forma de dobradura triangular surgiu. Ela era fina, muito fina, porém só de olhar para sua lâmina dava para sentir o fio que possuía. Guthrie viu que aquela espada era sua obra prima.
-Há! Que espada incrível! Entregue-a para mim! Ordenou Beorth.
-Primeiro, Cyra.
O cavaleiro então fechou seu rosto, e um segundo após começou a gargalhar.
-Seu idiota! Você realmente achou que eu a deixaria viver? Ela morreu um mês depois que você foi preso! Eu fiz questão de corta-lá em pedaços, assim ela nunca teria um descanso eterno. Você é um tolo achando que eu ia acatar ordens de um monstro como você. Agora vamos me dê a espada!
Guthrie ficou estagnado. Sua mão tremia, o brilho dos seus olhos se apagou, o tempo havia parado. Toda a sua esperança foi reduzida ao pó, e a única vontade que tinha era de vingança. Essa vontade foi tão grande, que subjugou o seu amor pela forja, fazendo com que quebrasse o seu encanto. Seus braço e perna voltaram a forma humana, e liberando-se do peso que carregava o seu talento, cortou a suas correntes com a última espada que forjara na vida, e com a mesma espada rasgou o braço de Beorth.
Quando se deparou com tal situação, viu apenas seu braço decepado ao seus pés. Levou a mão na ferida e com um urro proferiu:
-Seu merda! Eu irei matá-lo! Você irá morrer da pior forma possível! Eu me certifica—
– Você já matou as únicas coisas que eu amava. Eu já estou morto, e agora só resta vingança.
Com um movimento circular, Guthrie separou a cabeça de Beorth de seu corpo. A Espada de Papel teve sua cor transformada do branco, para o vermelho rubro do sangue. Guthrie conseguiu a sua vingança, porém sentiu os efeitos de quebrar um pacto com um ser divino. Seu coração ficou rígido, sentimento que ele não havia esquecido, a mesma dor que a pancada de Thürin havia lhe causado, sentiu seus pés, pernas se tornarem pedra novamente. Antes de se tornar uma rocha completa, Guthrie cravou a espada ao chão, fazendo com que tudo que havia criado naqueles últimos dois anos retornassem para sua forma inicial. Além disso todos os soldados do exército se transformaram em estátuas, esse foi o poder da vingança de Guthrie, que finalmente se tornou rocha.
Porém, a Espada de Papel continuou intacta, a lenda diz que foi a vontade de Guthrie que manteve ela livre do desencanto, tornando-a a espada mais forte de todos os reinos. Quem possuir esta espada terá o poder de dominar o reino dos homens.”
– Mas não se engane guria, a espada está com sua lâmina preenchida de corrupção, e aquele ou aquela que empunha-lá, deverá aguentar a dor de Guthrie, senão terá o mesmo destino do Meio-Golem.
-Vamos dormir, está tarde.
Rust entregou a Valen aquele pedaço de madeira, que após entalhado, se transformara em uma pequena espada. A garota guardou aquele presente embaixo de seu travesseiro, pensando o que faria se encontrasse, a Espada de Papel.